12 de março de 2012

Prosa&Verso - O Globo - 10/03/2012

Design e subsistência, Cynthia E. Smith


A designer americana Cynthia E. Smith é uma das convidadas da sétima edição dos Seminários Internacionais Museu Vale, evento que acontecerá entre os dias 14 e 18 de março no Museu Vale, em Vila Velha (ES). Sob o tema “Se essa rua fosse minha... sobre desejos e cidades”, o ciclo — co-organizado por Fernando Pessoa, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, com Ronaldo Barbosa, diretor da instituição — reunirá especialistas de diversas áreas para refletir sobre a ocupação do espaço urbano. Roberto DaMatta, Robert Pechman, Eliana Kuster, Sérgio Ferraz Magalhães, Ana Luisa Almeida, Jorge Mario Jáuregui, Paul Ardenne, Shirley Paes Leme, Argus Caruso Saturnino, Átila Roque, Heloisa Buarque de Hollanda e Amir Haddad completam o elenco de palestrantes. Mais informações no site do seminário.


*Por Cynthia E. Smith 


Estava no meu terceiro litro de água; coberta de terra e areia, caminhando ao vento, perto do maior lixão de Dacar, Senegal. Acabava de ver os trabalhos de uma equipe de alunos de arquitetura senegaleses e canadenses, que haviam projetado e construído, junto com artesãos locais, uma série de poços comunitários revestidos de mosaico para o assentamento periurbano de Malika, que não parava de crescer. Levamos uma hora para voltar até o centro da cidade, passando por vários prédios em construção, característica emblemática dessa cidade de crescimento acelerado.
Seria minha última entrevista depois de um ano de pesquisa de campo em quinze cidades na Ásia, África e América Latina. “O que descobriu em suas viagens?”, perguntou Oumar Cissé, diretor executivo do Instituto Africano para Gestão Urbana. Eu tinha descoberto que as soluções híbridas unindo a cidade formal e a informal eram as mais inovadoras. Oumar afirmou: “Os mecanismos formais não são o que há de mais adequado para tratar dessa informalidade cada vez mais rápida na cidade. Não conseguimos disponibilizar os serviços com a mesma velocidade do crescimento. Devemos encontrar um processo que seja mais apropriado para esta nova realidade criando uma interface entre o formal e o informal”.

Participação da população muda dinâmica dos projetos

Em 2007, a primeira exposição na série de Cooper-Hewitt sobre projetos humanitários, “Design for the other 90%” (Projeto para os outros 90%), ajudou a abrir um diálogo internacional sobre como o design poderia melhorar a vida das comunidades pobres e marginalizadas pelo mundo afora. Os projetistas profissionais sempre se concentraram nos 10% da população mundial que podem arcar com os custos de bens e serviços, mas isso mudou de forma drástica no atual milênio. Essa nova onda de projetistas, arquitetos, engenheiros, ONGs e filantropos está trabalhando diretamente com gente de poucos recursos, colaborando em conjunto com diversos setores para encontrar boas soluções e utilizando tecnologias que ajudam as comunidades mais pobres a darem o salto para o século XXI. Eles estão provando que o design pode desempenhar um papel significativo na solução dos problemas mais críticos do mundo.

Pela primeira vez na História, a quantidade de gente que mora em cidades está maior do que em áreas não urbanas. Essa migração em massa para assentamentos informais e insalubres, e já superpopulosos, é o principal desafio deste século, indo além da capacidade que muitas instituições locais teriam para tratar dessas questões. A exposição “Design with the other 90%: CITIES” (Projeto com os outros 90%: CIDADES) foi concebida para ampliar as trocas de conhecimento entre as populações que moram em cidades de grande crescimento e arquitetos, engenheiros, projetistas, planejadores, legisladores e diversas organizações, tanto as não governamentais quanto as de fomento, para gerar cidades mais saudáveis e inclusivas. É fundamental colocar o povo no centro da solução para que possamos perceber melhor como enfrentar esse desafio. A participação de favelados e da população pobre residente nas áreas urbanas está mudando a dinâmica desses projetos em todos os níveis.

Cidades migratórias, uma mudança histórica

Pelo mundo afora, quase um bilhão de pessoas moram em assentamentos informais, normalmente chamados de favelas. As projeções mostram que esse número vai duplicar até 2030. Grande parte do crescimento acontecerá em países emergentes em desenvolvimento no Hemisfério Sul, num mundo cada vez mais assolado pela mudança climática. Essa migração urbana em massa sinaliza uma mudança histórica em nossa civilização. Na América Latina, perto de 80% da população mora em áreas urbanas e, no Brasil, 90% moram em cidades.

Quando chegar o ano de 2030, todos os países em desenvolvimento terão mais gente morando em cidades do que em vilarejos rurais. Estima-se que a quantidade de favelas espalhadas pelo mundo chegue a 200 mil em condições de grande adensamento. A cada dia que passa, cerca de 200 mil pessoas chegam às cidades, atraídas pela possibilidade de conseguir trabalho, maior mobilidade e liberdade social, e uma vida melhor para suas famílias. Esses migrantes constroem suas casas com materiais descartados por outrem, normalmente em espaços precários.
A urbanização é tida por algumas pessoas como o problema; paradoxalmente, ela pode ser a solução, pois é capaz de propiciar “caminhos para sair da miséria” e oportunidades de um futuro melhor. Em vez de atrapalhar, ignorar ou negligenciar os pobres, as cidades devem se capacitar, atraindo todos os segmentos em prol da melhoria da vida de seus habitantes. O design está dando forma a ideias geradas em parceria com todas as partes interessadas.
Para aqueles que ainda estiverem morando ou migrando para esses assentamentos precários nas próximas décadas, serão necessárias medidas inovadoras capazes de assegurar posse da terra, serviços básicos e subsistência.

Tudo isso vai exigir a criação de novos sistemas que compartilhem modelos bem-sucedidos, adaptados à cultura local e ao próprio lugar; capacidade de escalonamento para que possam ser implementados de formas amplas; ajuda às autoridades locais para a melhoria da infraestrutura; a redefinição do que constitui uma cidade sustentável, inclusiva, competitiva, de categoria mundial; o preparo para uma atividade climática cada vez maior; e o desenvolvimento de uma “rede de conhecimentos em prol da infraestrutura urbana”.

Por um mundo urbano mais justo e mais humano


As economias dos países estão ligadas às cidades. É forçoso estabelecer cidades prósperas e sustentáveis tanto no Norte global quanto no Sul global durante esse período de migração urbana, mudança climática e expansão econômica. Precisamos mostrar à nova geração de profissionais da área como projetar em prol de um uso misto, com densidade e inclusão social, através da coabitação de renda mista, de investimentos de longo prazo em transporte público multimodal e de abordagens regionais colaborativas. Podemos aprender diretamente com as economias emergentes a melhor maneira de criar soluções inovadoras a partir de recursos limitados e exigências ambientais desafiadoras.

Precisamos planejar em prol de uma mudança transformadora, incluir o povo no planejamento e preparar a população para a complexidade urbana. Para tanto, precisaremos de um projeto urbano mais inclusivo; de políticas econômicas e ambientais responsáveis; da formação de novas instituições; de uma governança transparente; de mais equidade e melhor segurança; e de uma reforma agrária para um mundo urbano mais justo e mais humano.

 
* Cynthia E. Smith é curadora de design socialmente responsável, Smithsonian’s Cooper-Hewitt/ National Design Museum

Trechos do ensaio extraído do livro “Design with the Other 90%: CITIES”, publicado pelo National Design Museum Cooper-Hewitt, do Instituto Smithsonian, Nova York. © 2011, Instituto Smithsonian. Todos os direitos reservados.