6 de maio de 2012

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Refazendo tudo: de áreas subutilizadas surgem bairros sustentáveis

Aproveitar a arquitetura original é um dos meios de se reduzir o impacto ambiental

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Grande parte das construções de Vauban, na Alemanha, tem placas fotovoltaicas nos telhados. E há até casas que produzem mais energia do que consomem
Foto: Daniel Schoenen

Grande parte das construções de Vauban, na Alemanha, tem placas fotovoltaicas nos telhados. E há até casas que produzem mais energia do que consomem Daniel Schoenen
E se em vez de projetar um bairro sustentável, as cidades investissem em revitalizações dentro do seu perímetro urbano? Na segunda reportagem da série, “Se o meu bairro fosse verde”, o Morar Bem mostra as adaptações em quatro bairros pelo mundo. Em Mission Bay, São Francisco, Califórnia, a vida dos moradores mudou muito desde que a área começou a ser remodelada para se tornar sustentável. Carros já quase não fazem parte de seu universo. Assim como em Vauban, Freiburg, na Alemanha, onde parte da arquitetura de uma antiga base militar foi aproveitada para a construção de um novo modelo de moradia, com a coexistência de locais de trabalho e casas para classes sociais variadas. Em comum, os dois projetos tiveram uma ampla participação de moradores em sua elaboração. Exatamente como deve ser, dizem especialistas. No Brasil, ainda não temos projetos como esses.
Bairros adaptados, boa solução sustentável
Nada de se deslocar por quase 20 quilômetros, como acontece em bairros construídos do zero por falta de áreas livres no miolo das cidades. Nos projetos de remodelação, áreas subutilizadas no centro urbano ganham atributos sustentáveis: afinal, contribuem para reduzir a emissão do dióxido de carbono dos automóveis. A participação da comunidade no desenvolvimento da nova planta e a adaptação da arquitetura antiga são outras características de bairros em reconstrução.
Mas, nessa empreitada para reduzir o impacto ambiental, nem tudo são flores, aponta a arquiteta Viviane Cunha:
— Adaptar um bairro existente pode ser mais difícil do que construí-lo do zero. Há coisas mais complicadas para se fazer e leva mais tempo. Se for para derrubar tudo, por exemplo, acaba a sustentabilidade.
Gerente do projeto Mission Bay, da Prefeitura de São Francisco, Kelley Kahn discorda:
— Construir novos bairros é uma das soluções. Mas para que toda São Francisco se torne sustentável é preciso também pensar em remodelações.
MISSION BAY: Ir a pé para o trabalho, a escola, as compras. Aproveitar parques públicos para descansar e curtir a natureza. Fazer os trajetos a pé ou de bicicleta. É assim a vida em Mission Bay, São Francisco, Califórnia, desde a remodelação do bairro iniciada em 1998. Os carros já quase não fazem parte de seu universo. E todos os prédios construídos desde então seguem os preceitos exigidos pelo Green Building Council (GBC), que certifica edificações sustentáveis.
Apontado pelo governo da Califórnia como modelo de desenvolvimento sustentável, Mission Bay chegou lá graças a ampla participação da comunidade em todas as decisões: o que ainda hoje acontece em reuniões mensais, diz Kelley:
— Foram anos de discussões com a comunidade antes mesmo de iniciarmos o projeto.
O resultado foi o surgimento de um novo bairro que ganhou um grande circuito de ciclovias, além de uma linha de metrô integrando Mission Bay ao resto de São Francisco, e outra de trem interligando o bairro ao Vale do Silício. Três mil das seis mil unidades residenciais já estão prontas: 900 das quais, reservadas à habitação social. Com apenas 45% do projeto concluído (há 15 anos de renovações pela frente), o local também já conta com parques e áreas de lazer e esporte públicas e uma nova biblioteca, além de um campus da Universidade da Califórnia, que já tem sete de seus prédios prontos, inclusive um dedicado a pesquisas científicas. E estão previstos ainda, conclui Kelly, complexo hospitalar, hotel e escola pública:
— Terminado, Mission Bay será uma movimentada extensão de São Francisco.
VAUBAN: Na Alemanha, terra da Mercedes-Benz, a vida num lugar quase sem carros pode parecer inusitada. Mas é exatamente o que acontece em Vauban, a três quilômetros do centro histórico de Freiburg. Erguido, entre 1994 e 2004, em uma antiga base militar francesa, a partir de uma comissão formada por moradores das regiões vizinhas, o bairro proíbe a circulação de automóveis Na maior parte das ruas. O objetivo? Reduzir emissão de dióxido de carbono.
— A qualidade de vida é grande: ninguém sofre o impacto do tráfego — diz a moradora Heidrun Walter.
Mas nem todo mundo consegue se adaptar a esta rotina, que veta garagens em partes residenciais e parqueamento nas calçadas. Quem quiser esse bel-prazer, deve guardar o carro num dos dois estacionamentos na entrada do bairro.
— Quem quer ter seu carro em frente de casa não se adapta a Vauban e acaba deixando o bairro — continua Heidrun.
Debruçado sobre conceitos que reduzem o impacto ambiental, Vauban teve parte da arquitetura da antiga base reaproveitada como residência para estudantes e restaurantes. Nos terrenos baldios, foram erguidas casas com coletores solares e revestimentos para melhorar o conforto termoacústico. Ainda assim, um dos envolvidos na remodelação, o engenheiro Andreas Delleske, prefere não apontar Vauban como exemplo sustentável:
— Prefiro dizer que conseguimos produzir mais energia do que consumimos. Vauban é um bairro normal, talvez esteja um pouco melhor informado.
Já para a professora de engenharia da UFRJ, Ângela Maria Gabriella Rossi, Vauban é um bom exemplo de sustentabilidade urbana.
— Além de participação da comunidade e apoio do governo desde sua elaboração, o bairro tem mistura de classes e diversificação arquitetônica.
VÄSTRA HAMNEN: Malha urbana com ampla rede cicloviária, transporte a gás natural, ruas só para pedestres, sistema de armazenamento de água quente do mar durante o verão para aquecer habitações no inverno, conversão de resíduos urbanos em biogás, além de prédios planejados de acordo com a melhor orientação do sol e dos ventos. Assim é Västra Hamnen, que já conta com 4,5 mil habitantes. Quem passa pela região, situada a poucos quilômetros do Centro histórico de Malmö, na Suécia, dificilmente percebe que ali funcionava um grande estaleiro.
Tudo começou em 2001, com a exposição Bo01 — Cidades do Futuro, que apresentava uma intervenção permanente segundo os princípios sustentáveis propostos pela Prefeitura de Malmö. O evento pôs abaixo parte das edificações existentes e construiu prédios com 500 apartamentos, com coletores solares e uma bomba de aquecimento, que, com ajuda da energia gerada pelo parque eólico Lilligrund capta água e aquece as residências.
— O bairro usa 100% de energia renovável produzida no local a partir de uma variedade de fontes: solar, eólica, marítima e de um aquífero (reservatório da água natural) — explica Lotta Hansson, assistente do projeto, que, feito com a participação da comunidade, deve ser concluído em 2027.
GRAND LARGE: Bairro industrial, onde até 1987 funcionavam os estaleiros de Dunquerque, na França, Grand Large viu o movimento de trabalhadores desaparecer depois que o então presidente Jacques Chirac decidiu encerrar as atividades do local. Hoje, novo burburinho movimenta suas ruas: crianças brincando pelos parques e praças e moradores passeando de bicicleta ou a pé. Tanta diferença é resultado de um planejamento feito pela prefeitura.
A ideia é tornar sustentável toda Dunquerque — cidade reconstruída na década de 1950, depois de ter sido ocupada por nazistas entre 1940 e 1945, e que se tornou exemplo típico dos grandes centros urbanos da época, com avenidas largas e tráfego intenso. Para mudar o cenário, foi criado um plano urbanístico que visa ao crescimento para a periferia. Nesse contexto, nasceu Grand Large. De frente para o mar, estão as casas que se tornaram cartão postal da cidade. No estilo flamenco, ganharam muitas janelas e chaminé, para garantir maior ventilação natural. Todos os imóveis construídos a partir de 2005 — quando a reconstrução começou —, aliás, têm por característica a eficiência energética e o reduzido consumo de água.
Outro ponto forte: o mix de classes sociais, etárias e tipologias dos imóveis. Há de pequenos estúdios para jovens a apartamentos para famílias. Além disso, 40% dos imóveis são destinados à habitação social. Quando estiver concluído, em dez anos, o bairro deverá ter de 800 a mil unidades residenciais. Hoje, são 250.
Segundo alguns moradores, contudo, há problemas relacionados ao trânsito. Apesar de ter sido pensado para privilegiar pedestres e ciclistas, os prédios já construídos têm garagens pequenas para bicicletas e duas vagas de carro por apartamento. Além disso, o plano da prefeitura para tirar o trânsito do Centro de Dunquerque inclui a construção de uma via circular que contornará toda a cidade, passando por Grand Large.
A quantidade de veículos nas ruas, como se vê, é um dos principais desafios das cidades no caminho da sustentabilidade. Semana que vem, veremos como isso pode dificultar a transformação de um bairro bem carioca num modelo sustentável.